Nos últimos dias o algoritmo do Instagram achou que eu deveria receber um dilúvio de profetas de marketing e incríveis resultados.
Desde o senhor que se apresenta como “most interesting person in the room” (a pessoa mais interessante da sala), à senhora que diz que vai dar uma aula grátis para “ensinar como cobrar mais por suas consultas”, a uma outra senhora que diz que começou a aproveitar melhor o tempo quando deixou a I.A. gravar os vídeos por ela, ou as 5 pessoas entre os 20 e os 30 anos – um deles segurando um copo de vinho, uma delas numa sala luxuosa – que vão me ensinar tudo sobre como sair do plano de saúde e faturar mais com consultas particulares… presumo que vão me oferecer também o curso de medicina e a residência.
Falamos da I.A. como se fosse algo revolucionário que foi desenvolvido recentemente. Podemos viajar no tempo, até 1943, ano em que Warren McCulloch e Walter Pitts desenvolveram o primeiro modelo computacional para redes neurais. Nem McCulloch nem Pitts, nem mesmo Alan Turing, que em 1950 propôs o “Teste de Turing” para avaliar a capacidade de uma máquina exibir comportamento inteligente equivalente ou indistinguível a um ser humano, cunharam o termo I.A..
Só em 1956, John McCarthy, que utilizou a expressão durante uma conferência em Dartmouth College, estabelecendo o início do uso desse termo.
Em 2021 falava com um colega de engenharia, que trabalha com essa área, que me dizia que dava vontade de rir a moda de I.A., quando se desenvolviam soluções tecnológicas desse tipo há décadas, sem se colocar esse rótulo.
Voltemos a outubro de 2024.
Para o caso de ter surgido alguma ideia de que o texto tem algum teor anti-I.A., podemos dissipar qualquer tipo de dúvida: como qualquer tipo de solução tecnológica, desde que o seu papel seja ajudar a sociedade, serei sempre favorável à sua existência e uso.
Mas, olhemos para alguns pontos do uso de I.A.:
Direito de Autor
Quantas pessoas ganham dinheiro à custa de algo que não criaram e que não tiveram qualquer trabalho além de pedir a uma plataforma de I.A. para criar? E onde é que entra (ou entram) quem criou as bases para o produto final? (Questão válida para redes sociais como TikTok ou Instagram, onde o mesmo vídeo circula em centenas ou milhares de contas, gerando visualizações, cliques, receita para muita gente, mas não para quem criou, sem qualquer tipo de compensação financeira para as pessoas que criaram.)
Criatividade
Se usamos a tecnologia para criar, onde foi parar o processo criativo? O processo criativo passa a ser binário, um conjunto de 1s e 0s, sem grande intervenção além do “faz” ou “cria”. É claro que nós, pessoas, humanos, criamos com base em tudo o que absorvemos, nas nossas experiências, mas, se a máquina faz isso, onde fica a nossa vontade de procurar mais experiências, mais ideias para alimentarem o nosso espírito criativo?
Conhecimento
Consideremos a pirâmide de aprendizagem, criada pelo. psiquiatra americano William Glasser. Glasser defendia que só memorizar não chega, afinal, os conceitos são facilmente esquecidos depois da aula. Ele defendia que a forma mais eficaz de aprender é fazendo .
Segundo a teoria de Glasser, aprendemos:
Palestra/Demonstração (5%)
Leitura (10%)
Audiovisual (20%)
Demonstração (30% de retenção)
Grupo de discussão (50%)
Pratique fazendo (75%)
Ensine outras pessoas (90%)
Curiosamente, a pirâmide foi “reconstruída” no Brasil
Ler – 10%;
Ouvir – 20%;
Observar – 30%;
Ver e Ouvir – 50%;
Discutir/Debater – 70%;
Fazer – 80%;
Ensinar – 95%.
Concordamos que, se entregarmos o processo de criação – Fazer – à tecnologia, hipotecamos uma das formas mais eficazes de aprender, de saber, de adquirir e reter conhecimento?
Podemos ir mais longe e perguntar se, ao entregar esse processo de criação à I.A., vamos excluir a opção imediatamente abaixo, discutir/debater? Se a I.A. diz que é assim, então deve ser.
Mentores e especialistas
Vejam bem a proliferação de mentores e especialistas. Quando fui convidado para mentor de um programa, recebi o convite, passei por uma fase de entrevista e depois aguardei para saber se correspondia ao perfil que queriam.
O que tem sido (demasiado) frequente é a aparição de mentores e especialistas instantâneos. Vão fazer um curso, acabou o curso já são mentores e especialistas. Funciona? Dificilmente. Especialmente quando olhamos para pessoas que ingressam nesses cursos por não obterem resultados. Antes mesmo de colocarem em prática, já juntaram água e o produto final foi alcançado: mentores e especialistas instantâneos.
A I.A. é um recurso perigoso para mentores e especialistas sem conhecimento e experiência. Assumir que o resultado que a I.A. entrega é verdadeiro, sem ter conhecimento para verificar é um erro. Erro crasso.
Dar elementos para alimentar plataformas de I.A. com imagem e voz é questionável. Deep fakes não surgem do ar. Uma boa parte das plataformas de I.A. que estão no mercado são miseráveis. Não têm o mínimo de qualidade, por exemplo, na criação de legendas, não é por terem um número exagerado de erros ortográficos e gramaticais, mas também por não respeitarem a lógica das legendas (legendas são texto escrito, não são texto oral), o que facilmente nos permite deduzir que em termos de segurança da plataforma, a qualidade deverá ser igualmente reduzida, afinal “feito é melhor que perfeito”. O desejado MVP vira produto final, pulando MMP, MLP, MDP e MAP.
Se não vamos para um restaurante onde a comida não tem qualidade ou não existem condições de higiene, se não recorremos a um carpinteiro para tratar dos dentes, se reclamamos quando tem um mísero BUG no Instagram, por que motivo iremos usar soluções de I.A. que não cumprem todos os requisitos?
A I.A. deve ser usada quando está finalizada, ainda que seja sempre possível melhorar ou corrigir, e deve ser usada para os processos em que o ser humano iria somente perder tempo.
Fazer uma revisão do conteúdo não é perda de tempo, é uma garantia de que entregamos o melhor resultado. Criar não é perda de tempo. Aprender não é perda de tempo.
Atirar para a I.A. processos que nos fazem melhorar e nos fazem produzir com mais qualidade, é retirar do humano algo que deveria ser desenvolvido.