Há medida que o tempo passa, surgem mais publicações – especialmente em redes sociais – sobre profissões que vão desaparecer com a IA. O que ninguém parece dizer é que, não tão de repente, aparecem especialistas de marketing por todo o lado.
Não gosto de generalizações, por isso tentarei não criar estereótipos. É claro que há especialistas de marketing, há pessoas que percebem o que os consumidores querem, há pessoas que percebem como influenciar os consumidores e há quem se orgulhe do talento em vender gelo a esquimós.
É bastante comum conhecermos profissionais de marketing que, na sua essência, são focados em vendas, que têm como referência a cena de “sell me this pen“, do filme Wolf of Wall Street, uma clara alusão à criação de uma necessidade para efetuar a venda.
Há uma frase de Jay Conrad Levinson, o pai do conceito de marketing de guerrilha, que se pode traduzir da seguinte forma:
Quando se vê o marketing do ponto de vista, da guerrilha, (…) é a sua oportunidade para ajudar os seus potenciais clientes e clientes a terem sucesso (…). Você pode ajudá-los.
Pode mostrar-lhes como atingir os seus objetivos. O marketing não é sobre si. É sobre eles. Espero que nunca se esqueça disso.
É esse foco no consumidor e no que os consumidores procuram e o que os consumidores precisam que tem desaparecido. E que deixou de fazer parte das estratégias de marketing.
“Como criar desejo”.
Esta foi a linha mestra de uma estratégia de marketing para o setor de saúde à qual assisti em 2021. Saúde.
Parece mentira. Mas não é.
Quem elaborou a chamativa apresentação claramente nunca precisou ou teve alguém próximo que precisasse de cuidados de saúde.
Olhar para os consumidores como meros números que se inserem numa estratégia de funil é o que tem desvirtuado as relações de consumo e que, se olharmos com atenção, vai alimentar qualquer ferramenta de IA criada a partir dos dados de que dispomos.
As métricas como as conhecemos não servem para muito.
Analisemos algumas:
Métricas de tráfego.
Uma das estratégias para alimentar ou inflacionar este tipo de números é o clickbait. Há uns anos, clickbait era o oposto das boas práticas, hoje em dia é estratégia comum. Criar uma frase que leve as pessoas a clicar, a entrar, despertando a curiosidade através de uma expressão que, em diversas ocasiões, não tem tanto a ver com o que se vende.
O tipo de conteúdo, até mesmo nos portais supostamente jornalísticos, também foi desvirtuado. Aquela lógica que se aprende na faculdade de construir uma notícia e respeitar os valores-notícia foi substituída por uma geração de dúvida ou curiosidade que mantenha o leitor preso por mais uns segundos. Mesmo que acabe por perceber que não tem muito a ver com o que prometia.
Essas estratégias enganam. Não enganam apenas por incluírem gente que foi induzida em erro, mas enganam também pela experiência que ofereceram repelir essas pessoas. Por um lado conquistam os cliques, por outro geram repulsa.
Métricas de conversão.
Na categoria de conversão não está somente quem concretizou uma compra. A conversão inclui quem preencheu um formulário ou deixou o email para receber uma newsletter.
Os formulários são muito práticos para aumentar a base de dados de leads, mas, muitas vezes têm entradas de quem só quis receber ou ter acesso a um ebook ou quis pedir informações ou solicitar um orçamento.
Vou partilhar um exemplo muito pessoal que tive o desprazer de testemunhar há um par de anos. Uma agência pegou na base de contatos de perto de 30 mil leads e, após 3 meses de aplicação da estratégia, entregou uma conversão de 50%. Metade de 30 mil são 15 mil, certo? De acordo com a lindíssima apresentação que foi exibida pela agência, os 50% resultaram de sucessivos filtros, com base em quem abriu, quem clicou, quem não finalizou a compra. Desses filtros, saiu uma última lista de envios, com 8 leads, dos quais 4 compraram o produto. 50%.
Métricas de receita.
Não sou tão crítico deste tipo de métricas, apenas da forma como são usadas.
Diversas agências partilham o sucesso de determinada estratégia, com base em ROI (retorno sobre o valor investido na estratégia) ou LTV (tempo de “vida” do consumidor) ou CAC (custo por aquisição de clientes).
O problema dessa abordagem é o tipo de negócio que é usado como referência para um tipo de potencial cliente ou público.
Um restaurante pode servir como referência para uma clínica de oncologia?
Uma loja online de calçado de baixo custo pode ser referência para um escritório de advocacia da área empresarial?
Um curso online daqueles que custam 10xR$19,90 pode ser referência para uma escola bilingue?
Eu ajudo.
Não.
Métricas de engajamento.
Resumidamente: número de seguidores, likes, comentários e compartilhamentos. Muitas agências e pseudo-agências usam social media farms. Essa versão mais evoluída de click farms já gera comentários e partilhas, sem gerar real interesse ou vendas. Tive o desprazer de testemunhar uma inundação de likes e comentários num determinado perfil, num determinado post, vindos de um perfil parceiro. Foi demasiado evidente que a origem desses likes era totalmente artificial. Mas a agência que faz a assessoria desse perfil entrega likes, comentários e engajamento. Mas não entrega nada na realidade.
Métricas de Satisfação do Cliente.
O tão ambicionado nível de satisfação dos clientes com a empresa, produto ou serviço, que inclui NPS (Net Promoter Score), Avaliações de Satisfação do Cliente e Pesquisas de Satisfação.
Até isso deixou de ser de confiança.
A própria Google, através do YouTube, estimula a profusão de empresas que pagam por avaliações de 5 estrelas em APPs e redes sociais. As próprias marcas oferecem brindes ou descontos em troca de avaliações de 5 estrelas. APPs que, logo após a instalação, pedem de imediato uma avaliação de 5 estrelas para poder usar ou para ter acesso a determinadas funcionalidades.
Poderia perguntar se as métricas são de confiança ou se o funil faz sentido, mas a verdade é que sabemos bem que é tudo artificial.
A vantagem é que a criatividade saiu de cena e está tudo demasiado óbvio. Apesar da ingenuidade e ganância do ser humano levar ao uso de plataformas de apostas altamente duvidosas por acharem que é dinheiro rápido e fácil, e levar à eficácia desse tipo de estratégias, afinal, 10 dólares por avaliação são sempre bem-vindos, uma parte do público consumidor começa a ter noção do castelo de cartas que está criado.
Consumidores mais informados vão rejeitar essas estratégias. Consumidores desiludidos ou desagradados vão ser uma força equivalente ou maior que qualquer estratégia de sedução.