Ontem decorreu uma sessão sobre “como integrar a inteligência artificial de forma estratégica em projetos”.
Dada a profusão de palestras e webinars sobre I.A., convém sempre perceber quem iria participar desse momento. Uma empresa de soluções de inovação e tecnologia. À primeira vista, isso é um sinal de confiança e legitimidade.
Mas, após poucos minutos de fala da convidada, o anfitrião disse algo que me fez perder todo o interesse no que se seguiu.
Sem citar de forma literal o que foi dito, a frase foi algo do tipo “não precisamos de um curso de mecânica para usar um carro, logo, não precisamos de um curso de informática para usar ferramentas de I.A.”.
Muito sinceramente, essa frase é aberrante. E é um sinal bem frequente da defesa de soluções de má qualidade com base em premissas falsas e desajustadas.
No entanto, a má analogia pode ser usada de uma forma positiva.
E é exatamente com recurso ao que precisamos para usar um carro. Preparação teórica e prática. Conhecer as regras que são comuns a todos os que partilham a via pública, no carro e fora dele, cruzando os seus caminhos, aprendendo a usar de forma correta o carro, enquanto máquina, enquanto tecnologia de mobilidade.
Crítica
Em vários locais do Brasil, as regras do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) são totalmente desrespeitadas. E o desrespeito é legitimado. Uma das coisas mais estranhas que alguém se lembrou foi de criar uma campanha em que dizia às pessoas que querem atravessar a estrada na faixa de pedestre que deveriam sinalizar e esperar que o veículo parasse.

Para os mais curiosos, ou quem aprendeu outros códigos que não o brasileiro, bastaria pesquisar:
De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), o artigo 70 determina que os pedestres têm prioridade de passagem sobre os veículos quando atravessam a faixa de pedestres. Isso significa que os carros, ônibus, caminhões, motos e bicicletas devem parar e dar preferência ao pedestre.
O CTB também estabelece que é infração gravíssima não dar preferência de passagem ao pedestre, resultando em uma multa de R$ 191,54 e sete pontos na CNH.
Portanto, organismos públicos decidiram não educar, em vez disso criaram algo que contraria a própria legislação nacional.
Analisando a Analogia
Se queremos comparar as duas realidades, sem entrar em preciosismos de idade de quem usa, devemos observar a necessidade da formação e aprovação para poder usar o carro.
Essa realidade pode ser transferida, sem o mesmo carácter obrigatório, para a importância de saber como usar I.A. ou de perceber como usar esse tipo de ferramenta de forma a respeitar a sociedade em redor.
Essa percepção da sociedade e como o uso de ferramentas digitais pode ser danosa leva à tão polémica regulamentação. Criar regras para utilização, à semelhança do CTB, mas também criar penalizações para quem viola essas regras, principalmente, para quem usa I.A. de forma irresponsável.
As ferramentas de inteligência artificial estão aí e são inevitáveis, mas é preciso educar para a sua utilização responsável. E é fundamental criar regras.
Infelizmente, à semelhança do cinto de segurança, as pessoas sentem-se mais “motivadas” pelo medo da multa do que pelo medo das consequências
Concluindo
O “jeitinho brasileiro” não é e nunca poderá ser algo louvável. Qualquer profissional que tenha ou pretenda ter credibilidade não pode ter qualquer tipo de orgulho em atalhos.
Ir atrás de lucro ou notoriedade através da recomendação de ferramentas que não têm qualidade, só por permitirem cortar caminho, por permitirem tornar processos mais rápidos através de processos construídos em cima de uma base sem qualidade, não pode ser o caminho.
O MVP – minimum viable product – é uma versão inicial do que pretendemos disponibilizar e já indica, pelo nome, um formato mínimo, que ainda precisa de alguns acertos. Por isso mesmo, deve ser apenas considerado na fase inicial dos negócios. O MVP permite validar uma ideia antes de desenvolver o produto final. Pressupõe uma avaliação do produto, se tem qualidade, se vale a pena desenvolver esse produto, perceber custos e benefícios.
Após o MVP teremos o MMP – minimum marketable product, ou MMR: minimum marketable release. Resumidamente, aproveitar o feedback dos early adopters para ajustar o produto e lançar a versão melhorada para o mercado. Esse produto terá mais qualidade e os consumidores esperam que cumpra determinadas expectativas.
A palavra chave começa por M, mas não é mínimo, é melhor.
Esta nova versão deve ter uma performance melhor, deve ser escalável e, atenção a este último fator, deve ser de confiança.
Por isso, retomando a analogia dos carros, uma ferramenta de I.A. que não oferece qualidade e que não é de confiança, é como um carro que não responde aos desejos de quem o utiliza. Que não para quando mandamos parar, que não acelera quando mandamos acelerar, que não segue para a direita quando mandamos ir para a direita. As consequências são análogas.
Um carro que não para quando deve pode causar vítimas.
Uma plataforma de I.A. que não é de confiança usada por alguém que quer atingir o máximo de público é uma ferramenta de desinformação.
A I.A. pressupõe sempre interação com humanos. Os que alimentam a base de dados, os que a utilizam, os que consomem o produto final.
Uma I.A. mal alimentada, usada por pessoas que não têm capacidade ou que não pretendem gastar tempo com uma revisão, vai gerar um consumo de um produto sem qualidade.
Se não compramos carros sem uma roda, se não queremos baratas no hamburguer, se não queremos software com bugs, por que quereríamos ferramentas de I.A. que entregam resultados sem qualidade?